Desafios do racismo e discriminação na Bahia
Evento “O que as Mulheres Pensam”
“Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. A fala da filósofa norte-americana Angela Davis, defensora do feminismo negro, traduz em todas as esferas o evento “O que as Mulheres Pensam”, realizado pela Escola de Pensar no espaço Cultural da Barroquinha, em Salvador, na noite desta terça-feira, 23.
Participantes e temas discutidos
O encontro contou com a participação de mulheres potentes, como a cantora Nara Gil, a educadora social e militante LGBTQIAPN+ Paulett Furacão, a jornalista e apresentadora Wanda Chase e a professora e pesquisadora Daniele Canedo. Mediada por Thaiane Machado, uma das fundadoras e criadoras da Escola de Pensar, o evento surgiu em alusão ao Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, comemorado em 25 de julho.
Importância do debate
Segundo Thaiane, a conversa foi um momento de colocar os temas contemporâneos na mesa, celebrar conquistas e seguir com as lutas diárias. “O evento foi uma oportunidade única de reunir mulheres tão diferentes, de trajetórias e experiências de vida tão distintas, mas que expõem as suas visões de mundo de forma crítica e alerta. Por isso, é necessário falar, debater e lutar atrás de direitos e de uma possibilidade de melhoria nas condições sociais e econômicas, além de todo tipo de violência que nós, mulheres negras, enfrentamos. A data, além de ser importante para todas nós, é uma homenagem à Tereza de Benguela, uma escrava que virou rainha e liderou o quilombo, trazendo lutas e conquistas com outras mulheres negras e também indígenas”, disse.
Desafios enfrentados
A população afrodescendente na América Latina e no Caribe representa cerca de 21% da região e é afetada por racismo, xenofobia e discriminação relacionada a razões de gênero, orientação sexual, idioma, religião e origem social, no qual os efeitos são mais amplos para as mulheres. Diante deste cenário, o evento debateu temas como empregabilidade, maternidade, autoestima, preconceito e lugar de fala.
Relatos de experiências
Ao falar sobre seu processo de autoestima, a jornalista Wanda Chase explicou que toda base para que ela se reconhecesse como uma mulher negra potente veio de casa. “Eu tenho 73 anos e sou a mais velha de 5 irmãos. Essa autoestima, essa consciência de raça que eu tenho por décadas, eu aprendi em casa. Na verdade, não foi nem um aprendizado, mas sim uma questão de vivência mesmo. Eu sou neta de caribenhos, onde 90% da população é negra. Os meus avós, principalmente o vovô, era uma pessoa que sentava, lia para nós. Antes de nós sairmos para escola, passávamos por eles e se tivesse um fio de cabelo fora, ele falava para minha mãe ajeitar. Ele dizia que por sermos negros, tínhamos que ser mais estudiosos, mais arrumados… E isso não era para deixarmos complexados, mas sim confiantes e orgulhosos. Então o que vimos naquela época eram pessoas bonitas e elegantes. Minha família sempre investiu muito na educação. Na escola, os colegas tentavam fazer “piadinhas” nos desestabilizar, mas nada nos afetava porque já tínhamos consciência de nossa beleza e todo amparo dentro de casa”, contou.
Consciência racial e educação
Assim como na família de Wanda, Nara Gil, filha do cantor Gilberto Gil, também teve uma base familiar que investia na educação dos filhos. A diferença, segundo ela, é que não havia consciência de raça quando era mais nova, sobretudo por ela não ser negra de pele retinta. A consciência racial e autoestima para ela veio mais tarde. “A minha família paterna sempre investiu em educação desde cedo. Meu tataravô era escravo e trabalhava em um comércio. Ele dominou a leitura, escrita, conseguiu se tornar o comerciante mais influente e comprou sua própria alforria. Já meu avô, estudou medicina e casou com uma professora. Meu pai estudou administração, minha tia, odontologia… Então minha família sempre foi educada para o estudo e acabaram chegando a lugares que talvez outras famílias não chegassem”, disse.
O estudo, no entanto, não tinha relação com as raízes de Nara. “Era estudo para ser alguém na vida, para ter uma profissão, não para se reconhecer como negro. Meu pai diz que quando ele era pequeno, não se enxergava como negro porque não existia esse debate no interior. Só quando ele veio para Salvador que ele sentiu. Isso se perpetuou em mim. Eu sempre estudei em colégios particulares, não tinha um estudo profundo e, por eu não ser retinta, não me enxergava como negra. Só a partir da adolescência que eu fui começar a entender, porque eu fui buscar conhecimento sobre isso. Comecei a ler e a pesquisar e entender todo o cenário. Depois disso, fui entendendo algumas coisas que me aconteceram na infância me reconhecendo como mulher negra”.
Debate sobre lugar de fala
O tema lugar de fala foi amplamente debatido no encontro. A ideia de lugar de fala se popularizou no Brasil com o livro da escritora Djamila Ribeiro. Segundo a definição da autora, o conceito remete ao local de fala de uma pessoa, a qual se implica a sua realidade social, financeira e pessoal ao proferir um discurso sobre determinado tema.
A educadora social, assessora parlamentar e militante LGBTQIAPN+ Paulett Furacão afirmou que só ela pode falar do local de fala dela, pois só estando no local de mulher transexual é possível entender as dores e angústias sofridas por esse público. “Falar desse lugar de fala é lembrar que, sim, eu sou a única que posso falar de minhas dores. A gente não consegue ocupar os espaços. Pode ter gays, lésbicas, mas a gente não encontra transexual e transgênero nos espaços. Sou a única pessoa trans na Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, por exemplo […] Eu não queria ser militante, só queria viver. Mas o primeiro corpo que eu vi ‘tombado’ foi o da minha amiga, por isso eu mudei. Mudei a perspectiva e vi que precisava fazer algo pela minha comunidade. Nossa caminhada é solitária, a gente não sabe o que é afeto. A gente sufoca em todos os ambientes, onde não chega absolutamente nada. São múltiplas ocorrências nesse lugar de fala”, desabafou.
Paulett aproveitou ainda para explicar o porquê do “Paulett Furacão”, que, segundo ela, é um ato de resistência. “Eu consigo explicar a Paulette como uma resistência transfóbica. Hoje eu consigo assemelhar que o que aconteceu na 2ª Guerra Mundial não é muito diferente do que acontece conosco diariamente. Na adolescência, esse nome estava me adoecendo, porque eu já sabia dentro de mim que eu era uma mulher, mas ainda não tinha forças para lidar com isso e eu estava ficando doente. Até que então eu decidi ressignificar, porque o que era para ser violento na minha identidade, ressignifiquei para essa bandeira de luta. Deixei o Paulett e ainda acrescentei o ‘Furacão’ para destruir. Então meu nome no registro é Paola Beatriz, em homenagem a minha tia que estava no leito de morte, e Paulett Furacão como potência”.
Importância do lugar de escuta
Já a professora e pesquisadora Daniele Canedo, mulher negra de pele clara, sinalizou que, assim como a importância do lugar de fala, as pessoas deveriam também praticar o lugar de escuta. Por não ser retinta, muitas vezes, segundo ela, inviabilizam o discurso dela. “Eu sempre sofri um pouco do processo do que é lugar de escuta, que é sempre a dificuldade de me ouvirem sem me julgar. Sou filha de dois adolescentes que precisaram largar os estudos para me sustentarem. Eles nunca tiveram como me colocar em escola particular, mas sempre me incentivaram a estudar. Mas, por eu ser mais clara, com cabelo mais ondulado, muitas vezes não me escutam, não me dão o direito de contar a minha história. Claro que eu nunca sofri preconceito racial na pele e escancarado como pessoas retintas, mas já tive portas fechadas por não ser branca o suficiente para determinados lugares. Então, se você é parda, seu lugar de fala não é sobre o preconceito sofrido pelos negros retintos, mas isso não significa que você também não tenha seu lugar de fala, dentro da sua vivência”, pontuou.
Riqueza em conhecimento
Para a estudante de cultura, linguagens e tecnologias aplicadas, Priscila Teixeira das Neves, o evento foi rico e necessário para trazer à tona debates do cotidiano que acometem, principalmente, mulheres negras. “Vim porque enxergo o evento como uma forma de fortalecer pautas como essas, ainda mais para a gente, mulheres negras, são vivências que só a gente tem. Então eu achei muito importante tudo que foi discutido aqui, porque, apesar de a gente já ter acesso a alguns espaços, é sempre importante reafirmar, principalmente agora, o Julho das Pretas. A gente tem mazelas o tempo todo, a gente tem questões que ainda precisam ser corrigidas. E eu tenho esperança de que de janeiro a dezembro possam ocorrer esses debates de uma forma mais ampla, com a mesma visibilidade que se tem em julho e em novembro”, pontuou.